Publicado originalmente por Lucas Lima em 21 de janeiro de 2019 no Eufonia Brasileira
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No palco da Sala Adoniran Barbosa, no Centro Cultural São Paulo, Ronei Jorge é liberado da passagem de som. Lá fora, se vive uma das tardes mais quentes da metrópole paulistana. As pessoas dividem as ruas, avenidas e estabelecimentos em meio aos 34°C. Vivem “dias de horror, noites de goiabada, manhãs de estricnina”. Mas o mundo é assim mesmo.
Esguio, com olhos cansados e a barba média característica, Ronei Jorge desce a escadaria do CCSP em direção ao camarim. Lá, se depara com um garoto baiano adolescente dos anos 90, que, de certa forma, ainda habita em seu corpo. “Eu comecei gostando de rock. Adorava Kiss, Van Halen, aquela coisa de explosões no palco, sabe?”, relembra o cantor. “Quando se é garotão você fica fascinado com as capas, as máscaras do Kiss e tal”, completa.
Ainda no colégio, Ronei Jorge já participava de uma banda, a Mutter Marie, onde todos aprendiam juntos algum instrumento. O grupo chegou a participar de uma coletânea de rock lançada em vinil.
“Nesta época eu tinha uma guitarra. Nunca tinha tido um interesse muito grande pelo instrumento, mas eu ficava pensando: ‘eu tenho que entrar nesta banda’ (risos). Eu já gostava de escrever algumas coisas, pegava meu violão e fazia algumas coisinhas de melodia, bem simples. Eu virei meio que…para alguns amigos, eu era meio que um catalizador. Eu ouvia muita música, ficava ligado em coisas de cultura pop”, relembra. “Eu meio que influenciava os meus amigos a ouvirem a mesma coisa que eu”, completa.
A segunda banda foi a Saci Tric. Com ela, o artista conseguiu lançar seu primeiro álbum, em 1997. De 2003 a 2010, Ronei encabeçou os Ladrões de Bicicleta, grupo com quem lançou dois álbuns e teve uma repercussão maior pelo território nacional.
“Fizemos shows em São Paulo, Minas Gerais, Brasília, Rio de Janeiro. Fomos em muitos lugares, só não fizemos nada no sul do país”, conta.
Ronei Jorge lança agora “Entrevista”, disco com influência de tudo o que viveu musicalmente. Uma conexão com o garoto, que trabalhava em uma loja de discos e que, lá, teve contato com os “malditos” da música tupiniquim, como Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé e Jards Macalé.
“Naquela época eu conseguia ter, no máximo, dois discos por mês. Então, podia ser que no início eu nem gostava de determinado álbum, mas, com o tempo, eu passava a gostar. A gente dava mais chances ao artista”, conta. “Lembro que eu adorava ler a revista Bizz. Ver o que tinha de novo, conferir os encartes dos discos”, completa.
A mistura do rock com o caldeirão de ritmos brasileiros é perceptível em “Entrevista”. O coro feminino é uma volta auditiva a Itamar Assumpçao, Arrigo, Caetano e até mesmo Tom Jobim.
“A música brasileira foi um caminho que me chamou muita atenção. Eu tinha esta coisa de ouvir as coisas mais roqueiras da MPB. ‘Transa’, do Caetano. Gilberto Gil, Mutantes. E aí foi que eu conheci alguns amigos mais velhos, comecei a trabalhar na loja de discos”, diz. “A década de 90 tinha, sim, aquela mistura que as bandas faziam. Eu me lembro que eu gostava muito dos Picassos Falsos. E era uma banda que misturava muito”, completa. “A revista Bizz falava muito sobre as bandas mais undergrounds, como o Fellini, aqui de São Paulo. Patife Band…e eu ia atrás destas coisas. Muitas vezes demorava para chegar lá na Bahia”, completa.
Álbum solo
As vozes femininas não é o único diferencial no novo álbum de Ronei Jorge. “Entrevista” leva a conexão sutil entre o rock e os ritmos brasileiros. Para o cantor, o que mais difere o seu mais recente registro dos discos lançados com os Ladrões de Bicicletas é a construção da banda.
“A Ladrões não foi uma banda que eu escolhi os músicos para tocar comigo. Eu tinha chamado só o Maurício Pedrão, que é o baterista e que está comigo hoje. Esta banda do trabalho solo é uma coisa que eu tinha algumas músicas já prontas e fiquei meio que observando alguns músicos da cena local de Salvador”, conta. “Sendo mais objeivo, a diferença está na linguagem dos músicos, além desta minha passagem pelos gêneros musicais”, completa.
A construção do disco teve como base banda formada por: Carla Suzart (baixo e voz), Aline Falcão (voz, teclados, sanfona), Ian Cardoso (guitarra) e Mauricio Pedrão (bateria), além das colaborações de Lívia Nery e Taciano Vasconcelos. Moreno Veloso empresta sua voz em “Quem Dera Um Dia Fosse/Beijinho Doce”.
No show, atualmente, a banda é formada por Ronei, Aline, Maurício Pedrão, Ian Cardoso, Luisa Muricy e Taciano.
“As vozes femininas é uma coisa que eu já queria há um tempo. Queria ter outras vozes cantando minha música, cantando comigo”, explica. “Eu trouxe esta ideia para o trabalho solo e é interessante, né, porque em um trabalho solo você imagina que apareça mais, justamente, a voz solo”, completa.
Letras
As letras das 10 canções do disco são de autoria de Ronei Jorge, com arranjos feitos de maneira coletiva. “Acredito que muito das composições deste disco fale sobre as coisas das relações humanas, do cotidiano. E isso é uma coisa que tem em meu trabalho desde o começo. Algumas músicas deste disco tem um mote um pouco mais de dúvida. Tem muito mais perguntas do que respostas”, comenta.
Mesmo se referindo ao outro em maioria das canções, Ronei vê que, nas canções, ele pode estar falando para qualquer um, inclusive pra si mesmo.”Em ‘Noites de Goiabada’, quando eu falo: ‘Pra quê este mau humor, menina?’, também poderia ser para mim”, explica. “Eu sempre gosto de pensar que as situações são universais, sabe? Não estão escoradas em um tempo específico ou falando diretamente de alguma situação que aconteceu em determinado momento”, completa.
“Em ‘Parque de Diversões’ eu meio que pensei na coisa de que uma pessoa, no caso aí, o homem…ou, parece que é (risos). É uma pessoa que está em situação de força e outra de fragilidade. O começo é: ‘Te peguei, te beijei de farra/Fingi que ia te segurar/Brincar de sonhar, de sorrir/Menti, não vai ter amanhã. Então, na verdade, um deles já sabe que não vai ter amanhã e, o outro, não sabe”, comenta.
Ronei Jorge, em “Entrevista”, mostra que seus ouvidos sempre estiveram atentos no que está em seu redor e, em conjunto com sua qualidade lírica, dá uma brecha para ouvir o outro e absorver como aprendizado as virtudes externas. Trocas constantes, perguntas mais do que respostas e o saber ouvir é das coisas mais humanas a se fazer em tempos de cólera.
“O disco tem muito da influência da amizade, troca de informações. Isto é importante. Naturalmente eu tinha músicas compostas, mas as outras que se agregaram a elas fizeram sentido porque eu tinha esta formação de banda. Com o tempo, fui abrindo minha cabeça para compor de uma maneira diferente, pensar de maneira diferente. E, isto tudo é uma retroalimentação que tenho com os músicos. Aprendo com eles. Desde a Mutter Marie e agora com esta banda”, finaliza.