[Por Rafael Gushiken]
Nesse ano de 2012, comemoram-se os 30 anos de carreira de muitas bandas que surgiram na fervorosa década de ouro do rock brasileiro: os anos de 1980. Bandas como a Blitz, Barão Vermelho, Kid Abelha, Titãs entre tantas outras, não deixaram passar em branco e nada mais coerente do que presentear quem ajudou a consagrá-los, os fãs, com shows de comemoração.
Mas antes de serem consagrados, muitas dessas bandas começaram a carreira no underground (palavra de ordem da década de 80). O cenário musical daquela época –cenário este que eles estavam dispostos a mudar– ainda não era muito favorável ao rock; o Brasil ainda era um país (se diz o mercado fonográfico) totalmente voltado à MPB. Mesmo com nomes de peso como Rita Lee e Raul Seixas, o rock não possuía um terreno consagrado junto ao público, ainda era muito marginalizado, sem muitas projeções na mídia e também não havia um show business que os favoreciam.
O ano de 1982, exatamente há 30 anos, foi decisivo, pois foi o estopim das mudanças no cenário musical brasileiro, quando, finalmente as gravadoras se atentaram a essas bandas que já eram conhecidas no underground anos antes e resolveram contratar muitas delas.
Assim se afirmou que 1982 foi o início de uma nova geração musical não mais restrita à MPB, mas aberta ao contexto da música mundial daquela época, como o ideal do movimento punk, do-it-yourself (já defasado na Inglaterra, mas no Brasil ainda era um fomento de inspiração artística e na atitude) e nas bandas coloridas e divertidas da chamada new wave.
O favorecimento para a realização desse novo cenário musical que surgia e tentava se afirmar no Brasil, caracterizando o ano de 1982 como um marco da geração 80, deve-se a muitos fatores já bem comentados por muitos jornalistas especializados no assunto, mas há três que valem sempre serem lembrados (mais uma vez!).
FATOR UM – a lona do CIRCO VOADOR pousando na praia do Arpoador (Rio de Janeiro) em 15 de janeiro de 1982:
“Verão de 1982 Há alguma coisa estranha no ar deste circo e não é o cheiro de maconha. Esta lona foi erguida aqui, na Praia do Arpoador, algumas semanas atrás, em janeiro. Fizeram uma passeata por Ipanema para anunciar sua chegada e deram-lhe o nome de Circo Voador. Para cá convergiram pencas de grupos de teatro amador, alguns artistas consagrados, todos os maluquetes da cidade e muitos, muitos curiosos, atraídos pela música e interessados em se refrescar nessas tardes-noites quentes de verão. Aqui têm rolado umas coisas bem bacanas. Lá dentro, nesse momento, se apresenta um grupo de rock, é, deve ser isso, um grupo de rock, embora não haja cabeludos se masturbando com guitarras. Este aqui, aliás, tem até duas garotas cantando, meio esganiçadas mas bastante gostosas. Tem também guitarra (discreta), baixo, teclados e bateria. Ei, não é aquele baterista grandalhão que tocava com a Marina Lima? No microfone, um ator, como é mesmo o nome dele? Aquele do Asdrúbal. O show diga-se de passagem, é superteatralizado, mais parece vários esquetes musicais alinhavados. Será mesmo um grupo de rock? Canta-se em português, as letras não falam no diabo e sim em batatas fritas (…) O show, ou a peça, termina. Foi legal e a bandinha ganha os aplausos do público, cento e poucas pessoas, por aí, o circo não estava muito cheio hoje. No caminho para casa, o refrão de uma das musiquinhas fica martelando na cabeça, ô coisa mais pegajosa: Você não soube me amar, você não soube me amar, você não soube me amar (…)”
Trecho do prólogo do livro “BRock, o rock brasileiro dos anos 80” – 1995,
Editora 34 – escrito pelo jornalista carioca Arthur Dapieve
A descrição acima traduz a grande novidade, muito diferente do que já havia existido no Rio daquela época: a criação de um espaço cultural que agruparia uma leva de artistas novos e consagrados, tanto do teatro como da música. O Circo Voador foi concebido por Márcio Calvão, Maurício Sette e Perfeito Fortuna (ator e fazia parte do lendário grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone e se apresentavam por lá também).
Uma das bandas que começaram a fazer as suas primeiras apresentações da carreira no Circo Voador, foi a Blitz, de Evandro Mesquita (o tal ator no microfone), Márcia Bulcão, Fernanda Abreu (as duas garotas que cantavam também), Lobão na primeira formação (baterista grandalhão), Ricardo Barreto (guitarra), Antônio Pedro Fortuna (baixo) e William “Billy” Forghieri (teclados). Foi no Circo Voador que a banda –inspirada no conceito teatro-performático com o acréscimo de vocais femininos para cantar em forma de diálogos, como os B-52’s faziam– mostrou ao público, pela primeira vez, a musiquinha com refrão pegajoso: “Você não soube me amar”, que mais tarde se tornaria um hit nacional, tocando em todas as rádios daquele ano (1982) e colocaria a banda como umas das precursoras na história do rock nacional.
Não só a Blitz, mas outras bandas realizaram as suas primeiras apresentações também no Circo Voador, como o Barão Vermelho (contava ainda com o explosivo Cazuza), os Paralamas do Sucesso (a tradução tupiniquim do The Police) e o Kid Abelha (na época Kid Abelha e Abóboras Selvagens, ainda com o Leoni que foi um dos fundadores da banda). Outras bandas que não eram do Rio também se apresentaram no Circo, como a turma de Brasília: Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude; e até os paulistanos também chegaram a aparecer nos palcos do Circo, como as bandas punks Ratos do Porão, Cólera e Inocentes, levando o sucesso da grande repercussão do movimento punk, já bastante consolidado na periferia paulistana, para o Brasil afora.
A importância do Circo Voador no cenário do rock brasileiro foi ser uma vitrine dessas bandas, um espaço onde elas poderiam mostrar a que vieram. Lá, tocaram seus primeiros acordes, viram a reação do público que os consagrariam posteriormente e, o mais importante, conseguiram seus primeiros contratos com as gravadoras.
Durante a sua trajetória, o Circo teve altos e baixos, chegou a mudar de local, e até foi fechado pela prefeitura por irregularidades. Mas já foi reconstruído e continua em atividade regularmente, como uma casa de shows e espaço de eventos.
FATOR DOIS – entra no ar a primeira rádio de rock no Brasil, A RÁDIO FLUMINENSE FM, em 1º de março de 1982:
O rock sempre foi admirado pelo mundo todo e não seria diferente que aqui no Brasil não possuiria seus fiéis seguidores do estilo. Se naquela época já era difícil o acesso às últimas novidades de bandas internacionais, o que diria das bandas de rock brasileiro, e pior, as que se iniciavam a carreira. O contexto era que o rock nacional não tinha a menor abertura nos meios de comunicação e difusão.
Assim, por necessidade de força maior, surge a Rádio Fluminense FM no dial 94,9 MHz (conhecida como “A Maldita”), elaborada pelos jornalistas Luiz Antônio Mello e Samuel Wainer Filho. Com seus fracos sinais, levariam aos seus ouvintes uma programação exclusivamente de rock e primando na quebra de padrões e preconceitos em radiodifusão. Foi na Fluminense que uma leva de bandas iniciantes e sem gravadoras tiveram a chance de terem as suas fitas demo tocadas na rádio. Assim foi o início de Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Plebe Rude, Biquíni Cavadão, Capital Inicial, Kid Abelha, entre outros. E desse modo, criou-se uma “ponte” entre a Fluminense e o Circo Voador, pois as bandas que o público ouvia na rádio, poderiam ser vistas ao vivo na casa de shows. Finalmente, o rock se abrasileirava, surgindo uma cena nacional, que levou as gravadoras a ficarem atentas às bandas emergentes.
Os ouvintes da Fluminense também ficavam sabendo das últimas novidades do rock estrangeiro daquela época, através do “Rock Alive” pilotado pelo DJ e fotógrafo Maurício Valladares. Por meio do programa, foi possível ouvir os lançamentos das músicas de Echo & The Bunnymen, The Cure e The Smiths, por exemplo.
A rádio no decorrer dos anos, por questões comerciais e de rentabilidade, teve que diversificar a sua programação com a inclusão de músicas pop e outros estilos; a segmentação e o underground não geravam lucros. E desde 2005, a Fluminense também passou a transmitir notícias com a rede Band News FM, atualmente é chamada de BandNews Fluminense FM. Fato semelhante ocorreu com outras rádios de rock famosas surgidas também na década de 80, como a lendária e pioneira 97 FM do ABC paulista, que em meados dos anos 90 mudou-se para São Paulo e se tornaria a atual Energia 97, com programação direcionada a dance music. Assim também aconteceu com a 89 FM rádio rock, famosa rádio de São Paulo, que atualmente tem a sua programação direcionada à música pop e chamando-se apenas de 89 FM.
Escute a fita demo de “Ainda é Cedo”, tocada na rádio Fluminense quando a Legião Urbana não tinha gravadora:
FATOR TRÊS – O 1º Festival Punk de São Paulo, conhecido como “O COMEÇO DO FIM DO MUNDO”, realizado nos dias 27 e 28 de novembro de 1982:
“Nós estamos aqui para revolucionar a música popular brasileira:
Pintar de negro a Asa Branca,
Atrasar o Trem das Onze,
Pisar sobre as flores de Geraldo Vandré
E fazer da Amélia uma mulher qualquer”.
(Clemente, vocalista da banda Os Inocentes, em declaração à uma revistada época)
O movimento punk, importado de países como Inglaterra e EUA e adaptado à realidade brasileira, foi inspiração para várias bandas que surgiram em terras tupiniquins no fim da década de 70 e durante os anos 80. Mas foi em São Paulo que se consolidou uma verdadeira cena, principalmente pela grande quantidade de bandas surgidas na periferia paulistana (Freguesia do Ó, Vila Carolina e região do Grande ABC). Maioria adolescente, os punks andavam em grupos com suas vestimentas e comportamento subversivos, ocupavam regiões do centro da cidade como o Largo São Bento e a Galeria do Rock, e se alimentavam de LPs ou fitas K7s de bandas como Sex Pistols, The Clash e Ramones, inspiração pra eles tanto na sonoridade como na atitude. Foi em 1982 que foi lançado o primeiro registro do punk brasileiro, o lendário vinil “Grito Suburbano” de produção independente, uma espécie de álbum-compilação que continha músicas das bandas Olho Seco, Cólera e Inocentes.
O jornalista Antônio Bivar (autor do livro “O que é Punk”) que foi assessor informal de imprensa do movimento punk paulistano, soube justificar essa rápida identificação ocorrida na cidade: “A rebelião punk de São Paulo não é uma cópia importada do punk de fora, mas uma identificação adaptada à realidade local (…) A manifestação punk no Brasil foi fruto do próprio ambiente, o próprio meio proporcionou essa explosão de rebeldia entre os jovens”.
A gradativa notoriedade dessa turma, aparecendo na imprensa e mídia culminou, ainda em 1982, no festival genuinamente faça-você-mesmo: “O Começo do Fim do Mundo”, realizado no então recém inaugurado SESC Pompéia. Organizado pelo próprio Antônio Bivar e colaboradores, foram escaladas 20 bandas punks, tanto da capital como do ABC paulista, pois havia o intuito de promover a união entre grupos e facções que estavam se envolvendo em violentas brigas. No total, cerca de três mil pessoas deram as caras para assistir aos shows de Olho Seco, Ulster, Cólera, Inocentes, M19, Psykóze, Lixomania, Ratos de Porão entre outros.
O festival foi gravado em tape-deck do qual saiu um álbum em LP lançado no ano seguinte (mais tarde em CD) com as principais bandas e o título do festival na capa. Mesmo com a qualidade prejudicada em algumas gravações, o álbum é um registro histórico no rock paulistano e brasileiro (ainda que marginalizado e underground) que se iniciava a partir dali. Foi a percepção de que existia um cenário e um circuito novo na música brasileira.
Como o esperado, houve grande repercussão na mídia, tanto do lado sensacionalista: as manchetes dos jornais, até destaque no programa televisivo da rede Globo, o Fantástico, que deturpou o movimento e demonizou quem fazia parte dele. A imprensa mundial, no entanto, reconheceu São Paulo no mapa do punk rock mundial, e muitos olhares de produtores e gravadoras do exterior se atentaram às bandas daqui.
O sucesso do festival punk paulista animou os punks cariocas a realizarem também a sua 1ª Noite Punk do Rio de Janeiro, em 26 de março de 1983, tendo como convidados os paulistas: Inocentes, Cólera, Psycóze e Ratos de Porão; e do subúrbio do Rio: Coquetel Molotov, Eutanásia e Descarga Suburbana. Um fato curioso é que nessa mesma noite, os Paralamas do Sucesso também deram as caras por lá.
Os festivais realizados em São Paulo e no Rio chamaram a atenção de bandas de outras cidades do país, que também seguiam a atitude e sonoridade punk, e resolveram vir para São Paulo, onde a cena estava mais consolidada, para tocar. Foi o caso dos baianos do Camisa de Vênus, dos gaúchos dos Replicantes, e evidentemente a turma de Brasília: Plebe Rude, Capital Inicial e Legião Urbana. O documentário “Botinada: A Origem do Punk no Brasil”, produzido por Gastão Moreira, conta bem a história do movimento em terras tupiniquins.
Definitivamente, o ano de 1982 será sempre lembrado como um ano efervescente no rock brasileiro, diante de tantos fatos ocorridos que mobilizaram pessoas de diferentes lugares com a mesma sintonia e a vontade por mudanças. Se tivéssemos de traduzir sucintamente o zeitgeist da década de ouro do rock brasileiro, diria que basta voltarmos e relembrarmos o que aconteceu em 1982. Foi desse período que surgiram bandas e movimentos que definiriam o cenário do rock nacional nos anos que se seguiram.
muito legal! sou testemunha ocular dessa história e estava na 1a noite punk do circo voador em 1983!!!