Artista conversou com o Palco a respeito de seu mais recente single, “Sangue”, e antecipou informações sobre próximo álbum
Cada pessoa tem o seu modo de interpretar cada canção ou qualquer obra artística e, até por isso, muitos artistas fogem de dar algum tipo de “explicação” sobre os significados de seus trabalhos. Em “Sangue“, o mais recente single de Chico Salem, o retrato pode ser lido como uma pintura do Brasil pandêmico, onde, embora existam tantos óbitos, há pouca sensibilidade. Mas, não é bem assim. A faixa foi composta antes do Covid assombrar o planeta e, em um contexto maior, cabe para muitas situações onde o sangue derramado não atinge mais o coração das pessoas.
“Essa música nasceu de uma melodia antiga minha, já deve ter uns 15 anos. Eu tinha feito um show com participação da Pitty e fiz essa melodia com a intenção de mandar para ela. No final, nunca mandei, ficou guardada. Quando mandei para o Arnaldo, um mês antes da pandemia acontecer, ele adorou e veio com uma letra já na semana seguinte”, explica Chico.
Não existe, portanto, um significado concreto, mas, sim, um propósito. Uma canção de protesto, mais uma de Chico, lançada em 2021 sobre a perspectiva do caos, assim como era nos anos 70, onde o país viva sobre o AI-5. Mas qual é o papel da música de protesto hoje? “Se compararmos com os anos 70, vemos que são tempos diferentes, mas não menos sombrios. A ditadura que se instaura hoje é uma ditadura ‘democrática’ e isso é muito perigoso. Há também a ditadura digital, onde as pessoas se informam por meios exclusivos que só dizem um tipo de coisa e tomam aquilo como verdade. O grande risco dos tempos atuais é a relativização da verdade. Estamos em um momento não tão violento, não tão declarado, mas o estrago que chega até a sociedade é tão forte quanto nos anos 70. Neste sentido, as canções de protesto tem a função de levantar questionamentos. Mais do que oferecer respostas, é fazer as pessoas pensarem”, conta Chico.
“Sangue” tem letra composta por Arnaldo Antunes, que no ano passado lançou o disco “O Real Resiste“, registro onde o protesto tem ponto central. Zeca Baleiro intervêm na canção com sua voz. Parceiros de longa data de Chico. “Hoje, se você está se posicionando contra o governo, se você é a favor de vacina ou está a favor de pautas mais progressistas, você é de esquerda, você é petista. Eu percebi isso melhor com o lançamento de “Só Que Não”, no ano passado. ‘Sangue’ tem um cunho de denúncia, mas que tenta dialogar. Quanto mais, de certa forma, como artista, você conseguir tocar nas questões morais de cada um, menos chances dessa polarização acontecer”.
Raul Seixas
Um artista que conseguia dialogar era Raul Seixas e Chico, que montou um show em homenagem ao artista em 2019, faz questão citá-lo. “Ele era um cara absolutamente progressista e que tinha um jeito de falar que passava totalmente despercebido. As vezes tinha o cara de direita, defensor da ditadura, que era fã dele. Então, sinto que se a gente vem com uma bandeira muito encampada, fica mais difícil de ter uma capilaridade, uma penetração nas pessoas”.
Salem conhece Raul desde a infância e não só pelos discos. Quando ainda criança, encontrava o maluco beleza vez ou outra na padaria Estrela, no bairro do Butantã, em São Paulo. “Eu tinha 11 anos, morávamos no mesmo bairro, cheguei a conversar com ele. Sempre fui muito fã e toquei muito Raul. Quando me profissionalizei, sempre tive um sonho de fazer uma homenagem a ele com concepção de cenário e tudo mais e deu certo. Foi um projeto muito lindo, fizemos dezenas de shows. Me orgulho muito de ter feito”.
“Só Que Não”, canção lançada em 2020, traz a influência debochada de Raul Seixas. “A influência e o espírito do Raul que ficou depois dessa turnê homenagem são coisas praticamente inerentes ao meu processo criativo. Era impossível passar ileso depois de me aprofundar tanto na obra dele. Também senti muito a força do rock passar de volta pela minha pele. Eu cresci ouvindo rock e ‘Sangue’ e ‘Só Que Não’ terem essa roupagem tem a ver com uma expressão minha, que é mais gritada, mais roqueira.”, diz Chico.
Novo álbum
O último disco de Chico Salem, “Maior Ou Igual a Dois”, é de 2016 e o seu sucessor já está a caminho. “Sangue” e “Só Que Não” são prévias do registro planejado para o segundo semestre deste ano, porém há muito por vir ainda. “O álbum se chamará ‘Canções de Guerra, Gritos de Amor’, onde vou polarizar um pouco essa questão do protesto com a questão do amor, de forma romântica. Então têm arranjos que são só voz e violão, baladas além dessa veia roqueira”.
Chico Salem é um homem de muitos encontros na música. Para o disco, ainda virão mais parcerias. Na já longa carreira profissional, Salem já tocou e esteve na estrada com muitos artistas: o próprio Arnaldo Antunes, Marisa Monte, Elza Soares, Luiz Melodia e por aí vai. Com a pandemia, porém, essa rotina de turnês ficou estacionada.
“Sinto muita falta do calor humano, dos shows, estou desesperado para tocar. Mas é uma postura necessária, urgente e condizente com minha própria obra que torna isso um movimento maior. 2020 foi o ano mais importante da minha vida. Tive reflexões sobre minhas questões, momentos muito intensos de eu sozinho, comigo mesmo”, reflete. Quando perguntado sobre com qual artista que ele ainda não firmou mas deseja cravar uma parceira, Chico diz: “São muitos, com certeza. Mas um sonho, que ainda vou realizar, que volta e meia eu mando e-mail com alguma proposta, é o Gilberto Gil”.
Na era do cancelamento
A vivência musical profissional de Chico Salem já é grande e, agora, como todos os seres humanos, ele vive na era do cancelamento. “Isso é uma coisa totalmente cruel. Se há algo positivo, é a reflexão antes de falar ou de colocar qualquer coisa no ar. Se vou escrever algo, ou lançar uma música, eu paro e penso se aquilo vai atingir negativamente alguém, se estou sendo elitista ou preconceituoso. O que não pode é ter um medo ou um bloqueio de dizer. Mas acredito que nada é definitivo, o ambiente na internet é muito volátil”.
Diante a tantas coisas que acontecem, principalmente em nosso país, Chico Salem continua a protestar por meio da música e a buscar os questionamentos. Nos últimos tempos, muitas coisas ruins têm acontecido, principalmente na política e como diz a letra de “Sangue”, “ninguém acorda”. Será que existe solução?
“Eu sou um cara que acredita na humanidade. Eu vejo que o ódio é um sentimento humano, mas que faz as pessoas tomarem decisões totalmente apaixonadas. Não sei até que ponto precisaremos chegar para tomarmos essa consciência. Talvez seja um processo longo, que não aconteça na minha geração. Talvez com meus filhos, meus netos. A humanidade precisa se resolver, se não ela vai acabar como os dinossauros acabaram”.