Publicado originalmente por Lucas Lima em 13 de setembro de 2017 no Eufonia Brasileira
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Domingo com sol quente e flores a desabrochar em São Paulo. Na Vila Madalena, ruas desertas, poucos carros, mas ainda assim, a Mercearia São Pedro, número 34 da rua Rodésia, está quase lotada. Pessoas conversam e, na paisagem, ilustrações de filmes e bandas famosas. O som é de talheres a tilintar e cadeiras sendo puxadas, arrastadas sobre o chão. Leandro Coelho, conhecido apenas como Lê Coelho, aparece com sua barba robusta e um óculos de sol Ray Ban por cima do cabelo para um almoço e uma conversa descontraída.
O cantor pede peixe na sua refeição. O repórter, já tendo almoçado, fica apenas com uma água, para refrescar a garganta em um tempo tão quente como estava naquele domingo. E por falar em garganta… este será um assunto bem discutido neste texto.
Lê, agora morador da Lapa, se prepara para o show de lançamento de seu mais recente álbum, Imirim (Matraca Records/YB Music), lançado neste mês nas plataformas de streaming. A apresentação será no teatro do Sesc Pompeia, o mesmo que recebeu e recebe nomes tão importantes da Música Popular Brasileira.
Mas veja só, Imirim não é apenas um álbum, é um bairro, localizado na zona norte de São Paulo e, também, a base que formou como pessoa o cantor paulistano, que viveu lá por um bom tempo. “Com 21 anos eu fui morar na Aclimação com alguns amigos, fiquei morando dois anos ali. Saí quando fui estudar música na Unicamp, em 2003. Fui morar em Campinas, e, para mim, depois de alguns anos, comecei a perceber que o fato de eu ser, como eu era, as minhas crenças sociais, crenças políticas e todas as outras coisas que me formam como cidadão, tinha uma relação muito forte do fato de eu ter nascido naquele lugar, de ter convivido com aquelas pessoas. Se não fosse o Imirim, eu seria completamente diferente”, ressalta o cantor.
E o músico sempre foi de curtir as coisas simples da vida. Ainda garoto, teve toda a liberdade do mundo. Nos finais de semana, Lê tomava café da manhã e saía para jogar futebol com os amigos, seu passatempo preferido. Voltava para casa só quando batia a fome ou se estava passando o jogo do São Paulo na TV, seu time de coração.
“Comecei a perceber que o fato de eu ser, como eu era, as minhas crenças sociais, crenças políticas e todas as outras coisas que me formam como cidadão, tinha uma relação muito forte do fato de eu ter nascido naquele lugar, de ter convivido com aquelas pessoas. Se não fosse o Imirim, eu seria completamente diferente”
Uma das reflexões de Lê Coelho, é o fato de não terem tantas crianças hoje nas ruas do Imirim e nas maiorias dos bairros de São Paulo. O cantor gravou vídeos em que questiona moradores sobre o fato. A resposta da maioria é a falta de segurança e os avanços tecnológicos.
“Eu não sei se é essa violência é real, tenho dúvidas. Na minha época o tráfico já estava ali, se assaltava muito mais casas do que hoje, ao meu ver. O medo, hoje, é muito maior. Ali todos se conheciam , se eu não estava em casa eu estava com os filhos da galera da rua, então, ter medo do que? Acho que talvez este seja o problema, as pessoas hoje não interagem. Não dá nem para julgar, sabe lá como eu seria se eu tivesse crescido com um celular na mão, com 10 anos de idade. Mas aí falam assim: ‘é por segurança’. Na minha época, ou ligavam para casa no telefone ou meus pais não sabiam onde eu estava. Não tinha como saber, e ninguém morria por causa disso”, ressalta
Leandro começou a se interessar por música desde cedo. Ainda criança, começou a estudar no Conservatório Musical do Imirim. O garoto tocava também nos desfiles de fanfarras. Aos 13 anos, começou a assistir shows. Nesta idade viu a Legião Urbana, no Ginásio do Ibirapuera. Com 17, Lê já frequentava o Sesc Pompeia.e atravessava a cidade para assistir gravações do Bem Brasil, que era transmitido ao vivo pela TV Cultura direto do Sesc Interlagos, toda manhã de domingo.
Mas um show fica em especial nas lembranças do cantor. Os 5 no palco, Lenine, Marcos Suzano, Chico César, Paulinho Moska e Zeca Baleiro. “Cara, esse show foi foda. Delirei, no Teatro do Sesc Pompeia. Eu já conhecia alguma coisa do Zeca Baleiro, do Chico César, mas não conhecia o trabalho dos caras a fundo. Este show foi um marco para mim. Principalmente o Zeca Baleiro, Chico César e o Lenine, que viraram grandes referências para mim.”, ressalta o cantor
Dezenove anos se passaram do fatídico show e Lê Coelho tem hoje, como parceiro, uma das suas influências, Zeca Baleiro, que assina em Imirim, junto de Lê, a música “Cinema”. Antes disso, em 2012, Zeca já fizera o dueto “O Cara do Bar”, para o álbum “Um Samba a Mais”, de Lê Coelho em conjunto com o grupo Urubus Malandros.
“Este disco fala muito do indivíduo oprimido por uma máquina que é constituída pela elite burguesa e pela classe política. E este indivíduo está presente no Imirim.”
“Tive este privilégio de depois ter me tornado um parceiro do Zeca. Mas nem sonhava que isto seria possível. É uma coisa muito louca.Quando o Zeca gravou “O Cara do Bar” eu demorei muito para entender.”, comenta Lê.
Mas afinal, porque o Imirim é tão especial a ponto de se tornar título para o segundo disco solo de Lê Coelho? O cantor viveu em uma casa situada na garganta do Imirim, apelido dado pelos garotos do bairro pelo visual das ruas naquela região, que desciam e formavam uma espécie de garganta. A tal garganta é a referência na capa do disco de Lê, que conta com uma fotografia um tanto quanto instigante. É a própria goela do cantor que está ali!
Lê morou na Rua Apolinário Vieira Coelho, nome de um tio que nunca chegou a conhecer. Apesar do fato, o cantor e compositor se emociona muito ao lembrar do tio. Havia sempre fotografias de Apolinário na casa onde o músico morou. Ainda hoje, os pais de Lê residem lá. Apolinário Vieira sempre foi alcoólatra, acabou falecendo em um acidente de carro.
“Eu tenho uma irmã, três anos mais velha do que eu. Quando minha irmã tinha acabado de nascer, este meu tio faleceu, na Avenida Imirim, em um acidente de carro. Não sei dizer se minha rua não tinha nome, ou pediram para mudar. Lembro muito de minha mãe falar, tinha fotos. Minha mãe fala dele até hoje, com muita angústia e muita dor por ter perdido um irmão tão jovem, de uma maneira tão trágica como foi”, conta o cantor. “Ter o nome da rua e ver minha mãe falando, traz uma carga emocional forte para mim. Imagino a dor da minha mãe, que também tinha perdido o pai, antes de vir para cá, em Portugal”, complementa.
Mas apesar das origens, a base e as emoções que formam Lê Coelho como sujeito que é hoje, e que, de certa forma, move a música que o compositor faz, o bairro do Imirim também serve como outro escopo para o novo disco de Lê. O álbum apresenta canções como “João Menino” e “Nas Quebradas da Vida”, exemplos de narrativas sociais, sobre opressão e outros dilemas sofridos pelo povo da periferia. Isto é, o Imirim serve, de certo modo, como metáfora para bairros da periferia e suas complicações sociais.
Lê Coelho, apesar de viver em bairro periférico, teve alguns privilégios, como estudar em escola particular. Por ser branco, escapou da violência policial, mas viu amigos sendo oprimidos. É um disco que retrata a realidade por quem esteve de fato ali. “Este disco fala muito do indivíduo oprimido por uma máquina que é constituída por uma elite burguesa e pela classe política. E este indivíduo está presente no Imirim. Algumas músicas como “Canção de Todo Dia”, “João Menino”, “Nas Quebradas da Vida” ou mesmo “Palavra Rouca”, de uma outra maneira, falam disso, desses conflitos, destas desigualdades de condições que existem”, observa o compositor.
Todas estas revoltas atiça o papo do pouco acesso dos cidadãos de periferia à cultura. Até pensando nisso, após levar o Imirim à Pompeia, Lê Coelho pensa em um show gratuito, para os moradores do Imirim. Mas como cada coisa acontece de uma vez, “Imirim”, o álbum, tem lançamento nesta sexta, 15, com participação especial de Rômulo Fróes, músico também nascido no Imirim, e Thiago Melo.
Após duas horas de um bom papo, voltamos ao sol. A conversa durou e poderia durar ainda mais. Nos vemos na sexta Lê Coelho.
Lançamento do álbum IMIRIM, de Lê Coelho. Participações especiais de Thiago Melo e Rômulo Fróes
Integram a banda: Lê Coelho, Ivan Gomes, Chicão e Pedro Prado
Quando: 15 de setembro de 2017, sexta-feira, às 21h
Onde: Sesc Pompeia
Quanto: de R$ 6,00 a R$ 20,00