Publicado originalmente por Lucas Lima em 17 de março de 2019 no Eufonia Brasileira
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Era início da tarde quando o Sol brilhava fortemente no bairro da Vila Madalena, zona oeste de São Paulo. Ainda que o calor fosse intenso, nuvens mais cinzentas davam o prelúdio que a chuva cairia mais tarde, quiçá uma tempestade. De tempos em tempos, o clima muda, seja em intervalo de horas, dias ou meses. O fato é que naquele instante, na Rua Rifaina, tudo estava calmo. Poucos carros passavam, quase rente à estreita calçada do logradouro, passarinhos cantavam e uma leve brisa batia de vez em quando.
Faltavam dez minutos para duas da tarde quando Amanda Magalhães desceu as escadas e chegou na sala de entrada da Boia Fria Produções. A artista, de alta estatura, vestia-se com uma saia jeans longa e uma camisa branca. O espaço, que continha uma leve escuridão, era tomado por uma mesa com coisas espalhadas, um piano e um toca-discos. Uma porta dava acesso imediato à varanda. Amanda se dirigiu ao local.
Mas, afinal, quem é ela? “Acho que sou muitas, como tantas mulheres. A mulher tem essa coisa das facetas e ser muitas em uma só”, diz a cantora com vívido sotaque carioca, embora more há 15 anos na capital paulista.
Neta do fundador da banda Black Rio, Oberdan Magalhães e filha do atual líder do grupo,William Magalhães, Amanda tem caído de cabeça, de vez, na música. Com o peso de ser expoente da terceira geração Black Rio, a artista passou por muita coisa até de fato ficar frente a frente com o microfone.
Pré-adolescência
No meio familiar, obviamente, a música sempre esteve presente. Quando tinha seis anos, seus pais se separaram e ela foi morar com a mãe. Aos 12, passou a ter um contato maior, embora intuitivo, com instrumentos musicais.
“Lembro de minha mãe ouvir discos e ficar cantarolando pela casa. Ela também veio deste ambiente da música, era backing vocal da Baby Consuelo”, conta. “Nos finais de semana eu ia para a casa do meu pai e tinha este contato com os instrumentos. Eu comecei a tomar coragem, a sentar, ele (pai) me ensinava algumas música e, assim, fui começando”, completa.
O fato é que William passou a fazer muitos shows em São Paulo e a vivência no Rio ficou cada vez mais difícil. Ele então sentou com Amanda e disse que tinha resolvido se mudar de vez para a terra da garoa.
“Ele me disse: ‘eu sei que você está amarradona no piano, que está querendo estudar’. Morando com minha mãe, eu estava em uma realidade mais periférica, no subúrbio do Rio. Ele, sabendo bem todas as dificuldades que isto causaria com meus estudos, me convidou a ir para São Paulo. E eu topei, conversei com minha mãe. Foi difícil no começo, mas ela viu que eu estava bem focada e era isto que eu queria. Então, vim morar aqui com meu pai”, retrata. Foto: Renato Stockler
Em São Paulo, teve um acesso maior aos locais e à cultura, já que passou a morar em um local melhor localizado. Embora o foco nos estudos com instrumentos fosse grande naquele momento, nem passava pela cabeça da garota em ser cantora.
“Eu queria trabalhar com música, ser musicista. Mas cantora, não”, conta. “Eu gostava muito de trilha de cinema, e, nesta época, eu já criava algumas coisas com esta visão. Claro que era algo ainda bem de começo, nada a ser levado a sério. Gostava muito do Alexandre Desplat, eu baixava as músicas que ele compunha e ficava tentando tirar algo naquela vibe. A minha primeira composição foi eu pensando que estava fazendo trilha para o cinema. Se achando né, 12 anos de idade ali, no piano”, diz com sorriso frouxo estampado no rosto.
Rejeição ao que se tinha em casa
Uma das facetas que passaram pela vida de Amanda Magalhães foi a da rebeldia. Mais detalhadamente, rebeldia a tudo que se ouvia em casa. Como de praxe, a adolescência trouxe esta fase para a cantora. Nesta época, ela não ia muito ao encontro da Black Music e nem da banda Black Rio, mas, sim, ao rock clássico.
“Eu gostava muito de coisa antiga, tipo Jimmy Hendrix. Quando você vai construindo a sua personalidade, e esta é uma fase muito de tentar se encontrar e encontrar suas tribos, você quer ser você mesmo e aí você vai, automaticamente, contra tudo que se tem em casa. Se na sua casa o pessoal escuta tal coisa, você quer escutar o oposto e ir para outros lugares. Aí foi minha fase do rock, que durou uns dois, três anos”, diz.
“A Amanda que eu menos gosto é a que se boicota. Que é muito exigente e tem medo, pois se cobra muito. A que eu mais gosto, é a que é o oposto disso. Que se joga, que é alegre”
“Depois que eu fui sacar que gostava muito do que acontecia em casa. Por conta deste movimento de eu querer me conhecer e criar minha própria identidade, eu descobri, fora do meu espectro familiar, que o que eu tinha em casa era foda pra caralho. Era esta coisa do funk, das influências, aquilo que meu pai sempre estava compondo e eu escutava do quarto. Eu vi que aquilo era tão foda e que tinha um lugar que mexia comigo, que antes não entendia. Aí, então, comecei a me relacionar com a Black Music como um todo”, explica.
E a música ficou de lado
Logo após ao mergulho na Black Music, Amanda concluiu que música não era pra ela. Foi então que o foco mudou, se direcionou para o teatro. A artista entrou na Escola de Arte Dramática, na USP e parou de tocar. A partir daquele momento, era apenas uma ouvinte.
“No sentido que eu fui entendendo a história da minha família, da Black Music em um contexto amplo, eu vi a responsa que aquilo era. Me senti atrasada, porque passei muitos anos tendo relação com instrumentos de forma intuitiva. Acho que tinha muita coisa acontecendo ao meu redor, eram muitas descobertas. E eu não tive o foco. Em dado momento as coisas se perderam e eu não consegui dar continuidade”, explica.
Ainda que houve a desistência, a artista vê este período como positivo. “O teatro me abriu a cabeça para muitas coisas, foi como uma explosão”, diz. “Além de cantora, me considero atriz”, completa.
“Naquele momento a música tinha um lugar meio que sublime, como em um pedestal, sabe? Acho que tive medo da responsa mesmo. Sabe aquilo de quanto mais se estuda uma coisa mais você não sabe nada sobre aquilo? Foi isto”.
Como atriz, Amanda, que caiu fundo nos estudos, conseguiu espaço em peças teatrais e participou de séries como 3%, da Netflix e Psi, da HBO.
Nasce a cantora
Durante seis anos, Amanda Magalhães ocupou apenas o lugar de ouvinte em relação à música. Por todo este tempo, o teatro era o foco principal. Até que as artes cênicas a levou de volta ao campo musical, porém, agora, como cantora. Era a descoberta de outra virtude da artista.
“Participei de uma peça e a diretora pediu para eu cantar. A montagem era ‘Solidão Nos Tempos de Algodão’, texto de Bernard Marrie Koltès. E era cantar à capela, cara. Pensa em uma bagulho medonho (risos). Topei o desafio, trouxe uma proposta: Billie Holiday, a música era ‘Solitude’. E cantei durante a temporada, que foi curtinha”, explica. “Aquilo fez diferença para mim. Além de ter sentido que botei alguns demoninhos para fora, era um momento em que parecia não ter personagem ali cantando, que era eu na peça. As pessoas vinham falar comigo e comentavam muito sobre o canto. Aquilo despertou o meu lado cantora, que eu nunca tinha percebido”, conta.
Assim, decidiu que queria cantar, fazer suas canções e colocar a cara a tapa. Porém, nada é tão rápido. Apareceu, neste momento, o seu lado produtora.
“Fazer valer é viver o momento presente, fazer o instante. Sinto que este é um exercício diário meu. Se consigo sempre, já é outra história (risos)”
“Não me via em uma posição, e ainda não vejo, de intérprete. Me observo muito mais no campo de cantar aquilo que me diz respeito. Sou cantora das minhas músicas. Após a peça, entendi que queria continuar cantando, que iria explorar mais esta coisa, mas que era em uma vibe de apresentar as minhas coisas. E eu comecei a escrever. Cheguei em um momento que falei ‘eu quero gravar isto’. Sentava no piano, fazia uma harmonia, cantava e pensava como seria maneiro poder gravar e compartilhar as coisas que vinha fazendo”, explica.
“Aí, óbvio, a primeira coisa que veio na cabeça foi procurar meu pai, para entender como que poderia ser feito. E começamos meio que brincando. Vendo ele produzir e trabalhar tudo aquilo, me seduziu muito. Então, aprendi com ele a fazer produção musical, a mexer em software, a juntar grana e montar meu estúdio em casa”, completa.
Foram quatro anos compondo e instruindo-se em relação a produção musical. A artista faz tudo sozinha, desde as letras até os arranjos e execução dos instrumentos.
Nos extremos
A pluralidade e os diversos momentos existencialistas, criam simpatias e desavenças pessoais que formam quem é Amanda Magalhães. Há, por exemplo, um ângulo, auto-analisado pela cantora, com mais carinho, enquanto um outro, totalmente oposto, observado com mais aversão.
“A Amanda que eu menos gosto é a que se boicota. Que é muito exigente e tem medo, pois se cobra muito. A que eu mais gosto, é a que é o oposto disso. Que se joga, que é alegre”, comenta. “Existe toda uma paleta, veja bem (risos). De um lado ao outro, tem várias camadas, e estes são os extremos”, explica enquanto faz um espaço imaginário com as mãos.
“Como não tenho banda, faço tudo sozinha, embora troco ideias com meu pai, é demorado e às vezes mais tortuoso também. Nossa mente tem estes gatilhos: você está começando a fazer certa coisa, descarta, começa outra…”
A exigência em altos índices cria uma Amanda perfeccionista. Embora este lado seja o menos venerado pela artista, ela vê que há uma boa forma de análise. “Isto tem um espectro de positividade, na medida que me traz a busca por alguma coisa que seja bom, que eu ouça e fique feliz com aquilo, que sinto que tenha qualidade, valor de produção. Há também a chave negativa, que é a coisa de se paralisar, quando esta energia está em seu ápice. E a minha busca recente é de encontrar este meio termo e não deixar de fazer aquilo que sinto que tenho fazer”.
Tal determinação em demasia causa, por vezes, um bloqueio em relação a produção das músicas. Mas, hoje, a musicista se diz tranquila em relação a isto. “Vejo que nunca se termina uma música. Sempre terá algo a melhorar, então chega um ponto que abandonamos mesmo”, explica. “Sou muito introspectiva, então mostro as canções para poucas pessoas. Tem um lugar de timidez, com minhas criações, que venho quebrando. É um processo”, completa.
A hora do disco
Durante um bom tempo Amanda Magalhães trabalhou em composições para o seu disco de estreia. Claro, vieram muitas criações. Mas como escolher o que entra e o que fica de fora?
“Como são muitas Amandas, tem hora que eu penso ‘não, não é isto’, aí jogo fora. Imagina um papel, só que um álbum inteiro (risos). Mas, mentira, está tudo guardado, revisito de tempos em tempos, resgato coisas que achava que não tinha sentido. É um processo solitário, então tem idas e vindas. Como não tenho banda, faço tudo sozinha, embora troco ideias com meu pai, é demorado e às vezes mais tortuoso também. Nossa mente tem estes gatilhos: você está começando a fazer certa coisa, descarta, começa outra…”
O álbum ainda não tem nome definido e não foi totalmente gravado. Dois singles foram lançados, “Fazer Valer” e “Vai Ouvir”, pelo selo Boia Fria Produções, com distribuição da Warner Music. “Terá muito R&B, trap, eletrônica, embora menos do que se espera”, conta a cantora. O registro contará com participações especiais, porém mantidas em sigilo pela artista. “Já tem parcerias fechadas, mas é surpresa”, diz.
Fazer Valer
A primeira canção divulgada nas plataformas de streaming foi “Fazer Valer”, com participação do rapper Rincon Sapiência. “Fiz esta música pensando nele”, diz a cantora.
“Esta música é meio que o reflexo de uma batalha interna, que até já falamos um pouco. Não só pelo equilíbrio das coisas, que é, sim, uma ideologia pela qual me identifico, que é do budismo, mas é também deste sentido da busca, de ser leal a si mesmo, de ser verdadeiro com as coisas, com a vida”, explica. “É viver o momento presente, fazer o instante. Sinto que este é um exercício diário meu. Se consigo sempre, já é outra história (risos)”, completa.
Vai Ouvir
O lançamento mais recente é “Vai Ouvir”, faixa mais solar do que a anterior, porém com um discurso proveniente de uma situação mais sofrida, que trouxe a tona a faceta empoderada da artista.
“Fiz esta música no final de 2016. Foi após um término. Estava na onda de ouvir muito jazz cigano. Estava na França, fazendo uma peça que estava em cartaz lá, então cheguei com muitas coisas absorvidas. O fato é que eu estava em uma relação abusiva, que acabou de modo complicado. Diante a tudo isto, bateu a vontade de falar deste lance com este cara, totalmente tóxico”, explica.
A roupagem solar da canção é proveniente do Gypsy Jazz, muito difundido na França, por onde a cantora esteve tempos antes de compor a canção. “Todas estas experiências resultaram nesta música”, conta.
Entre Amandas e Amandas, as que ainda não conhecemos estarão em seu álbum debute, ainda sem data de lançamento divulgada. Afinal, há muitos elementos em uma linha entre o marasmo e a tempestade, e, por vezes, todas estas coisas estão em um mesmo lugar. Assim é Amanda Magalhães, formada por várias facetas, que culminam em uma personalidade própria, enfim pronta a se apresentar ao mundo por meio da música, das letras e do canto. Aguardemos.