Disco da década de 1980 mostra um Bowie discreto no quesito experimental, mas craque na simplicidade que costuma cair bem ao pop
[por Andréia Martins]
O que faz de um disco clássico um clássico não é necessariamente o número estonteante de unidades vendidas, o excesso de elogios rasgados da crítica, a combinação de fatores sobrenaturais que numa mistura cósmica equilibram sonoridade, letras e vibração de um jeito diferente. Bem, um disco clássico pode ser um simples disco de repertório redondo (tsc tsc). Tonight, 16º disco da carreira de David Bowie e que completa 20 anos em 2014, é um exemplo disso.
O disco tinha a missão de repetir ou pelo menos manter o sucesso da agitada turnê do trabalho anterior, Let’s Dance. Bowie não teve muito tempo para compor nesse período e por isso gravou alguns covers e contou com parceiros como Iggy Pop, Brian Wilson e Tina Turner. O resultado foi Tonight, um desses discos gostosos justamente por quebrar as expectativas de inovação, surpresa e experimentações de Bowie. É pop, dançante e simples – e para alguns críticos, um dos piores da discografia do cantor.
Essa leve decepção por parte da crítica teria uma explicação. A década de 1980 foi aquela em que Bowie passou de superestar para um megastar. E depois de usar saia, da androginia, de Ziggy Stardust, da trilogia de Berlim, talvez Tonight fosse simples demais para um artista como Bowie.
“Loving the Alien”, uma das duas composições do disco que são assinadas apenas por Bowie, abre o álbum, num pop seco e cujo resultado final não agradou tanto ao cantor, que em performances ao vivo mudou a versão da música. Mesmo assim, a faixa foi escolhida como um single tardio do álbum, ganhando um videoclipe engraçado com um Bowie alienígena.
O lado A do álbum traz ainda “Don’t Look Down”, cover da música que Iggy Pop gravou em 1979 no disco New Values; “God Only Knows”, uma releitura pouco inspirada do clássico dos Beach Boys, e “Tonight”, de Pop e James Williamson, gravada num dueto com Bowie e Tina Turner. Sobre essa música, Bowie já a chamou de “desastrosa”, confessando que gostaria de ter feito outro tipo de cover.
O tesouro do disco está guardado no lado B: “Blue Jean”, a outra faixa assinada apenas por Bowie e o grande hit do disco. Pop dançante, com refrão fácil, sax. guitarra e teclado dividindo riffs grudentos e um “uuh” para fechar a fórmula matadora de uma boa canção pop. Mais dançante, esse lado do disco traz ainda “Neighborhood Threat”, “Tumble and Twirl”, “Dancing With the Big Boys”, mais três dobradinhas de Bowie e Pop, e o cover “I Keep Forgettin”, da dupla Jerry Leiber e Mike Stoller.
Iggy Pop em peso
A participação de Pop em Tonight reforçou uma parceria que vinha desde a década de 1970, quando ambos moravam em Berlim oriental e iniciaram uma longeva e produtiva amizade. A parceria rendeu elogiados discos lançados das duas partes – Idiot e Lust for Life, de Pop, e Low, de Bowie.
Pop assina cinco das dez faixas do álbum. Dessas, talvez a melhor história seja a de “Dancing With the Big Boys”, última música do álbum e que Bowie e Pop compuseram em um dia, ao lado de garrafas de cerveja e do desapego, valendo escrever tudo o que viesse à cabeça. Foram necessárias oito horas para compor a música que, segundo Bowie, apontava uma direção que ele pretendia seguir no trabalho seguinte, se aventurando mais, já que a experimentação não tinha sido a palavra de ordem de Tonight e Let’s Dance.
Em uma entrevista após a gravação do disco, Pop foi questionado sobre a participação de peso no álbum –compondo, cantando e fazendo backing vocals, além de acompanhar a gravação com a banda nos estúdios. Na resposta, ao falar dos covers, disse que Bowie talvez quisesse que essas músicas “apenas fossem mais ouvidas”.
Um flerte com o cinema…
Em Tonight Bowie aproveitou para flertar um pouco com a sétima arte. Além do videoclipe de “Blue Jean”, ele aproveitou para fazer um curta-metragem com a música. Jazzin for Blue Jean tem pouco mais de 20 minutos e foi dirigido pelo inglês Julien Temple.
O mesmo Temple dirigiu o filme Absolute Begginers, que contou com a participação de Bowie no elenco. Embora o seu lado ator não tenha sido muito elogiado pela crítica, a música que integra a trilha, “Absolute Begginers”, chegou ao número 2 da parada britânica.
Talvez, a melhor forma de ouvir Tonight seja entendê-lo como uma passagem significativa na sonoridade de Bowie e que apontava novos rumos. No disco seguinte, Never Let Me Down, de 1987, ele se distanciou da cara dos dois discos anteriores. Não que este também tenha sido m dos seus mais brilhantes discos – como o próprio reconheceu –, mas a feitura de álbuns clássicos sempre passa por caminhos árduos que, muitas vezes, são tão importantes quanto os clássicos em si.