[Por Andréia Martins] – “Eu sou paga para te ajudar e não para ter pena de você”. Foi esta frase, ouvida ainda na ambulância que o socorreu naquela fatídica noite de novembro de 2000, no Rio, que Marcelo Yuka percebeu que sua vida tinha mudado para sempre. Depois de ser surpreendido e receber nove tiros, o então baterista do grupo O Rappa, no auge do sucesso, não sairia o mesmo daquela experiência. Em todos os sentidos.
A frase acima foi contada pelo próprio Yuka em 2010, durante uma palestra no TED, evento que promove uma série de conversas com personalidade de diferentes áreas. A pílula de toda aquela transformação ainda estava engasgada na garganta.
Por isso, a missão de contar a trajetória de Yuka em um documentário não era das mais fáceis. Coube à diretora e amiga de Yuka, Daniela Broitman, encará-la. O resultado é o documentário Marcelo Yuka no Caminho das Setas, que chegou aos cinemas em 30 de novembro depois de passar e ser premiado na edição de 2011 do Festival do Rio. O nome foi inspirado em um conselho do poeta Wally Salomão a Yuka: siga as setas.
“Eu já conhecia o Yuka e queria entrar mais no universo dele. Já achava tudo o que ele falava muito interessante e na linha do que eu quero fazer no meu trabalho, do que eu acredito, e sempre o achei muito carismático. Esse filme não é daqueles que tem uma mensagem, ele não busca isso, ele mais abre questões”, contou uma ansiosa Daniela por telefone, na véspera da estreia do filme nos cinemas.
Para a pergunta de quão complicado foi convencer Yuka a contar sua história, Daniela tem uma resposta simples e breve: “Fui exigente e teimosa para conseguir. Foi um desafio”, disse. “O Yuka é uma pessoa que não gosta de falar muito do passado. Mas quando ele viu o filme pela primeira vez, ele ficou sem palavras”.
Ela começou a gravar imagens do músico desde 2004. Ao todo, foram 130 horas de imagens, obtidas em arquivos de imagens de TVs, arquivos pessoais e o que aparecesse. “Se eu não vi alguma imagem foi porque esconderam de mim”, brinca a diretora.
Não foi fácil. Contar a história desse cara, um cidadão comum, músico, compositor, ativista, contestador e vítima da violência. Esse último, nunca fez a cabeça de Yuka e ele nunca quis ser visto como tal. Mas é inegável que seja. Vítima da violência a que todos nós estamos expostos. Isso ele não escolheu. No entanto, escolheu não se ver como vítima, e isso guiou também o documentário.
“Foi uma preocupação não deixá-lo com cara de vítima [no filme], mas na verdade não tinha necessidade de fazer uma história sensacionalista. Eu me interessei pela história dele e acho que outras pessoas iriam se interessar porque é uma história interessante. Então não usamos artifícios melodramáticos, música para emocionar, essas coisas”, conta a diretora.
“O que me ajudou é que eu tinha um roteiro pronto na minha cabeça, e isso me ajudou a definir melhor o que entraria ou não no filme. Queria mostrar três facetas da vida dele: o Marcelo enquanto ser humano, homem, com suas questões, emoções, as relações com as mulheres e a família; o artista, que é o musico, o compositor, poeta, pensador; e o ativista cultural e político, uma pessoa que esta atuando sempre e muito engajado em projeto sociais”.
Depois do acidente, Yuka não parou de trabalhar – tanto com música e a política quanto com seu corpo. Montou outra banda, entrou na política e queria ser cobaia para qualquer teste experimental que desse a ele chances de andar. Todas essas transformações, profissionais e pessoais, físicas e emocionais, são mostradas no filme.
Todas com variações estéticas, cores e texturas diferentes. Pois se tinha algo que a diretora queria desconstruir era a ideia de que um filme com muito conteúdo, especialmente político e social, não pode ficar esteticamente bonito e bem produzido. “Fui esteticamente cuidadosa com o filme. Tem gente que acha que um filme com um conteúdo social não pode ser bonito. E eu quis fazer um filme bonito”.
Um dos méritos do filme e de seu personagem é de não medir ou esconder sentimentos. A personalidade forte de Yuka não deixa esconder a sua indignação nada comedida após ficar preso a uma cadeira de rodas. Tudo bem que ele segue vivo, mas tudo bem não achar que isso basta, ficar bravo, dizer que detesta a cadeira de todas. Tudo bem. Pois isso é ser humano. Assim como a tentativa de recomeçar, inerente a quem tem uma mente ativa como Yuka, que como o próprio diz no filme, busca resposta para a sua pergunta: “o que eu preciso para viver em paz?”
Também não deve ter sido fácil lavar a roupa suja do músico com O Rappa. No filme, ele fala talvez pela primeira vez do que o levou a sair do grupo e o público descobre também as desavenças entre os dois lados. Cada um que tire as suas conclusões.
Depois do filme, nem a própria Daniela saiu ilesa. “Me entreguei muito a esse filme. Em 2011 fez oito anos que estive envolvida no projeto. Acho que foi o grande desafio da minha vida”, diz ela.
No entanto, na semana da estreia, ela tinha apenas uma pulga na orelha e só depois de resolvê-la é que descansaria em paz: o bonequinho [traduzindo para os que não o conhecem, o implacável crítico cultural do jornal carioca O Globo]. Dois dias antes, tinha finalmente obtido a resposta de misericórdia. “Ele aplaudiu”, disse ela. Difícil encontrar que não o faça. Tanto pela história quanto pela bela produção.
Veja o trailer do documentário e acesse o site oficial para ver extras do filme: