Peça passeia pelos dilemas amorosos dos 20 e poucos anos, destacando seu melhor elemento: as trilhas que embalam as dores de amor
[por Andréia Martins]
Quantas vezes você já sofreu por amor? Ou quantas vezes você já sofreu, colocou o pé na jaca, a cara na sarjeta, ou como quer que você chame a tal fossa? Se tem uma coisa que a gente sabe – na verdade são duas as certezas universais – é que cedo ou tarde, vamos todos sofrer por amor. E se for para sofrer, que as lágrimas sejam embaladas por uma boa trilha sonora.
E é justamente esse o ponto principal da peça “Música para cortar os pulsos”, dirigida por Rafael Gomes – o mesmo de “O Tapa na Pantera”.
A peça apresenta os universos particulares de três jovens em torno dos 20 anos: Isabela (Mayara Constantino), Ricardo (Victor Mendes) e Felipe (Kauê Telloli). Com estrutura de monólogos intercalados – ou um mosaico de histórias recolhidas ao longo dos 20 e poucos anos do diretor -, a tríade vai pouco a pouco desfolhando seus sentimentos íntimos, anseios, frustrações, dúvidas.
Para interagir com o púlico, a peça criou um blog, o Músicas para cortar os pulsos, onde são postadas informações sober a peça e várias músicas que se enquadram na categoria, além de receber sugestões dos internautas.
Rafael bateu um papo com o Palco Alternativo sobre a produção e se confessou “um músico frustrado”. “Mas a música, até por ser essa arte de compreensão mais abstrata e instintiva, tem um poder imenso de comoção que não me larga (e nem acho que jamais largará). Então eu vou sendo ‘músico’ através dos filmes, das peças, dos textos e até mesmo dos shows que dirijo”, disse ele.
Confira a entrevista:
Primeiro como a história começou a ganhar corpo? Você foi juntando histórias e momentos que você e amigos já vivenciaram, como foi essa construção?
Exatamente por aí. Eu tinha um sentimento, uma vontade de criar personagens e situações que extravasassem um pouco essa pulsação intensa e derramada que as músicas causam em nós, ou para as quais são sempre trilha sonora em nossas vidas. Esses momentos de descaminhos, encontros, perdas, romantismo e paixão. Daí a dramaturgia foi se erguendo como um mosaico de histórias recolhidas ao longo dos meus vinte e tantos anos, dividida em três personagens que estão em momentos muitos particulares e distintos dentro do furacão do sentimento amoroso.
A escolha do repertório deve ter tomado um certo tempo, imagino, pois o que não faltam são músicas para cortar os pulsos. Como foi feita essa seleção?
Ouvimos muitas músicas, pelo menos três por dia durante os dois meses de ensaio. A seleção daquelas que acabaram na peça aconteceu de forma orgânica – como se elas se ‘colassem’ sem esforço a determinadas cenas, momentos e sentimentos. Mas até hoje eu sofro com as muitas que ficaram de fora. Houve também o caso de recorrer a canções que inspiraram a escrita do texto, ou mesmo que fossem diretamente citadas na narrativa, que tivessem função diegética no espetáculo.
Você tem o seu top 3 de músicas para cortar os pulsos?
Muito, muito difícil escolher três. Mas eu não seria fiel ao próprio conceito de “música para cortar os pulsos” se não apontasse uma dita ‘brega’ como, por exemplo, “Evidências”, de Chitãozinho e Xororó. “There Is A Light That Never Goes Out”, dos Smiths, me deixa imediatamente melancólico. E “Três da Madrugada”, de Carlos Pinto e Torquato Neto, na voz de Gal Costa, é também destruidora (tá, não aguento e tenho que dizer que “Sua Estupidez”, de Roberto Carlos, é também muito difícil).
A peça é jovem não apenas na linguagem, mas nas referências e na experiência. Você acha que há pouca produção com bom conteúdo para esse público, ou que mostre mis momentos e experiência vivenciados especialmente nos nossos 20 poucos anos?
Eu tenho certeza que há pouca produção, porque eu sou um espectador ávido de teatro há pelo menos 10 anos e sempre senti falta de obras que me retratassem de mais de perto. E quando as há, quase sempre são textos importados, alguns até bons e bem montados, mas nos quais sempre perdura uma sensação de deslocamento, uma consciência contínua de que aquilo ali é ‘teatro’ antes de ser a exposição de uma realidade próxima – minha noção é a de que o ‘espetáculo’, nesses casos, acaba vindo antes da experiência (não sei se me faço entender). O que eu queria era fazer uma peça em que o sentimento, o espelho, a identificação e a comoção viessem primeiro, e só depois o público lembrasse que é teatro.
Rafael também tem outro projeto bem legal, o “Música de Bolso”, um projeto audiovisual que faz música para ver e vídeos para ouvir. Clique e espie só
Pelos seus trabalhos anteriores, esse público de 20 e poucos anos parece te interessar muito. Algum motivo especial ou trata-se de uma identifiação natural com esse público, pela idade?
Acho que é pela idade, por me sentir mais confortável em falar de algo que já vivi ou esteja vivendo. Este é um terreno que eu sinto pisar com mais segurança.
É engraçado que mesmo quando há rompimento e términos, a gente pode descobrir boas músicas, mesmo que elas sejam para cortar pulsos e se derreter em lágrimas. E depois que passa, você acaba virando fã da banda… Já aconteceu com você?
Muito. Aliás, é bastante comum que nós gostemos de uma música justamente porque ela nos faz sofrer, não é? Quem nunca colocou uma música querendo deliberadamente chorar ao ouvi-la? Porque é como se a música fizesse uma purgação daquela dor, ali a gente cria uma pequena catarse emocional que vai corroendo para limpar, para lavar e ir curando. Não é assim? Ou também, quando já parou um pouco de doer, a gente volta a ouvir a música para rememorar a dor que já não arde, mas cuja lembrança nos faz vivos.
A peça traz uma sensação de que estamos revivendo alguns momentos, não tem aquela coisa de mensagem, “moral da história”, enfim, minhas impressões. Pela receptividade do público [a peça está super bem falada na rede], você está satisfeito com o resultado?
A peça não tem nenhuma pretensão de dar recado nem de “ensinar” o que quer que seja. Nós só estamos tentando ser muito honestos e compartilhar (essa, aliás, é a palavra de ordem, desde a forma como abrimos o processo em blog e Twitter, passando pelas canções que nós sempre pedimos para que nos mandassem). Porque dói menos sofrer acompanhado. Porque a gente precisa de outros corações para costurar os nossos. E, principalmente, porque a alegria precisa ser dividida. Nando Reis diz em uma música (para cortar os pulsos) que “tornar o amor real é expulsá-lo de você pra que ele possa ser de alguém”. É isso. Nós estamos expulsando sentimentos de nós para que eles possam ser da plateia. E a receptividade das pessoas tem sido de um envolvimento e de uma entrega muito grandes, como sempre quisemos, mas não exatamente poderíamos esperar. Estamos, portanto, todos imensamente satisfeitos com o resultado.
Li que essa peça vai virar um longa em 2011. É verdade? Algo de novo na trama ou a ideia será a mesma?
É verdade. Mas a trama em si deve sofrer várias alterações. Ainda estou estudando se fico com os três personagens ou me foco mais em um deles. O que certamente será transposto para a tela é essa intensidade dos sentimentos que vem com trilha sonora (e as músicas, claro!).
Você é formado em Cinema mas dá pra perceber que a música tem uma grande influência no seu trabalho… Você também é músico?
Eu não toco em nenhuma banda e acho que sou um músico frustrado. Brinco com o violão, mas não sei nada formal sobre música. Mas a música, até por ser essa arte de uma compreensão mais abstrata e instintiva, tem um poder imenso de comoção, que não me larga (e nem acho que jamais largará). Então eu vou sendo ‘músico’ através dos filmes, das peças, dos textos e até mesmo dos shows que dirijo.